Talvez para ti, que lês este texto agora, seja estranho o que vou escrever pela primeira vez. Tem a ver com o meu nome e com o que estas três palavrecas podem significar. Cada um tem, em relação ao seu nome, a sua própria atitude, penso eu.
Ora comigo, depois daquela tarde única de 2 de Outubro de 1974 (quando desembarquei na Portela e entrei na vida real), tomei consciência de que o meu nome passou a adquirir vida própria.
Eu explico.
Desde miúdo, fui sempre o Zé Carlos.
Zé Carlos, e mais nada. Era simples, específico (não era apenas o Zé, como outros).
Zé Carlos, e mais nada. Era simples, específico (não era apenas o Zé, como outros).
Comecei muito cedo a dar aulas lá no Externato da vila da minha terra.
Para todos era o Zé Carlos.
Nas aulas era o Professor Zé Carlos. Depois vim para Lisboa. Colégio Álvares Cabral Cabral, Avenida Grão Vasco. Continuava a ser o mesmo: Zé Carlos ou, nas aulas, Professor Zé Carlos. Quando muito, para o Director, era o José Carlos Mendes. Coisa rara. (Hoje, não: até para mim já sou o Zé Carlos Mendes. Coisa estranha de se pensar: um nome com três palavras e ter de as usar todas. Proleta, mesmo. Bom, muito bom.)
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Mafra
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Um dia dou comigo de farda verde em Mafra.
Primeiro choque: deixo de ser dono de mim. Frente-marche-esquerdo-direito (e mais tarde, em Santarém, apenas um dia horrível, ou em Lamego - três meses do fim do mundo da vida... aí é que a coisa aqueceu...).
E sempre o mesmo problemas com o meu nome: deixei de ter personalidade própria, como ela tem de ser, e passei a ser o Cadete, o nosso Cadete Mendes, mais específica e surpreendentemente para mim.
Mendes? - pensava sempre que me chamavam: que é isso de Mendes?
Depois, a Amadora.
Meu aspirante para cá. Nosso aspirante para lá.
Mas sempre a mesma palavra agarrada: aspirante Mendes.
Foi aí que descobri que me compensava desta despersonalização, vingando-me de quem me obrigara e ser despersonalizado.
E passei a rectificar, sempre que podia:
- Aspirante miliciano.
Miliciano, para fazer bem a diferença entre nós, os milicianos, os que éramos obrigados a estar ali, na tropa (eu, os cabos e furriéis milicianos e todos os soldados - os quais, como saberás, eram todos milicianos, isto é, membros da milícia que eram 99% dos membros das Forças Armadas daquele tempo).
Mas volto ao meu nome.
Luanda, Cabinda, Bata Sano
Chegado a Luanda - e, depois, a Cabinda e ao Bata Sano -, não perdia ocasião de lutar pelo que podia (deixara para trás o Zé Carlos, mas recuperava a outra guerra do nome. Era alferes, certo, tinha de ser alferes, mas era miliciano - era a minha guerra privada, a minha vingançazinha contra o sistema).
Ou seja: desisti, porque não seria eficaz lutar contra toda a máquina para impor o Zé Carlos. Era Mendes. Estava condenado a ser Mendes: meu alferes Mendes, nosso alferes Mendes. Mas se tinha oportunidade de o reafirmar, lá vinha o miliciano, por exemplo, quando me apresentava formalmente, batendo a pala e tudo - o que fiz sempre de forma bem abandalhada, como alguns se lembrarão (era famoso por isso também...):
- Alferes miliciano Mendes -, respondia eu, sempre que podia ou precisava de me identificar. Para quem está de fora, deve ser completamente cretino um gajo investir tanta energia a defender que era miliciano ou a reagir mal cá dentro pelo facto de o terem despojado do seu «verdadeiro» nome: Zé Carlos.
Na minha vida profissional, depois de 20 anos a tentar impor o Zé Carlos apenas, acabei por fazer uma síntese e adoptar e impor o nome completo: as três palavrinhas...
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Bom, mas estes tiques só a malta que passou pelo que nós passámos é que os entende e os considera justificados.
Durante estes 34 anos, quando se recorda a tropa e sempre que posso (ainda há dias neste mesmo blogue me aconteceu) lá ando eu sem dar por isso a repisar que fui miliciano, já que desisti da guerra de impor o meu verdadeiro nome «de sempre»: acabei por aceitar que sou o Mendes, mas se alguém fala de alferes ou se eu posso, acrescento logo: miliciano.
Como quem dissesse:
- Não se baralhem: estive lá. puseram-me nos ombros aquela coisa a que chamavam galões, mas não tive culpa: eu era miliciano, miliciano, miliciano!
.
Estão a ver como é fácil contar-vos uma história sem interesse nenhum mas com todo o entusiasmo?
Sabes porquê?
Porque estou vivo e posso escrever e tu que me lês também estás vivo e me podes ler...
É que há quem não esteja vivo e não possa ler isto.
E isso deve ser lixado, meu: estar morto e não poder ler nem escrever.
... Liiivra!
- Não se baralhem: estive lá. puseram-me nos ombros aquela coisa a que chamavam galões, mas não tive culpa: eu era miliciano, miliciano, miliciano!
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Estão a ver como é fácil contar-vos uma história sem interesse nenhum mas com todo o entusiasmo?
Sabes porquê?
Porque estou vivo e posso escrever e tu que me lês também estás vivo e me podes ler...
É que há quem não esteja vivo e não possa ler isto.
E isso deve ser lixado, meu: estar morto e não poder ler nem escrever.
... Liiivra!
2 comentários:
Simplesmente fantastico. Sabes que tudo isto está a mexer imensamente comigo? As 4 da matina ainda andava na cama às voltas, a ver todo o filme da minha vida. E agora chego aqui e dou com este fantastico texto. Obrigado meu Alferes Miliciano (Zé Carlos) Mendes. Um abraço
Ok... Alferes Miliciano Mendes... ou melhor - OK... Zé Carlos Mendes.
Um abraço
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